segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Não olhe para o lado

Uma leitura do filme "Não olhe para cima" de Adam McKay e David Sirota

Lançado na plataforma Netflix na véspera de Natal, o filme teve grande repercussão nas mídias sociais, pela crítica que desperta do momento político em que vivemos. Escrito antes da pandemia, o filme pretendia parodiar a situação das mudanças climáticas. Da mesma forma que os astrônomos foram ignorados, ao tentarem alertar o mundo sobre a vinda de um cometa capaz de erradicar a vida no planeta, há décadas cientistas que tratam dos perigos iminentes das mudanças climáticas são abafados por parte da mídia e por quase todos os governos. 

Entretanto, devido ao que vivemos na situação pandêmica, o filme teve uma repercussão muito diferente da pretendida. Não nos fez refletir, exatamente, sobre os perigos das mudanças climáticas e como os governos têm ignorado a comunidade científica neste meandro, mas sobre outro problema. Numa paródia é comum encontrarmos elementos que sejam exagerados, ou levados ao absurdo. Uma ferramenta estética e política do artista para chamar a atenção do seu público para um dado problema. O que angustiou, em particular aos brasileiros, pelo que vivemos recentemente, é que sequer foi possível termos essa percepção cômica do absurdo da paródia. Nós estamos vivendo o absurdo tragicômico. A situação política que foi representada, de como políticos e mídias entorpecem e anestesiam a população, são reais e cotidianas para o brasileiro. 

Políticos e mídias nos entorpecem ao disseminarem problemas imaginários e assim nos afastar dos problemas reais. Mídias nos anestesiam por filtrar a informação que passam de acordo com o conforto de seu público. A divisão política que hoje se evidencia entre veículos de informação de esquerda ou de direita foi originada por esse problema. É muito difícil encontrar um brasileiro que ainda acredite existir alguma mídia neutra ou imparcial. Sempre que dada informação incomoda o leitor ou ouvinte, ele imediatamente rotula o canal como "esquerdista", "conservador", "fascista" (que agora é termo universal dos dois campos para tudo o que cria esse desconforto). 

Embora governos e as mídias pareçam se combater no jogo democrático, acabam sendo duas partes de um mesmo todo, ao favorecer interesses financeiros escusos. Os primeiros criam problemas que não existem para se somar aos problemas que já existem, como os "perigos" da vacinação, por exemplo. As segundas vêm oferecer a única saída possível para o impasse criado pelos primeiros, pois problemas imaginários, obviamente, são problemas sem solução. Para não cair no desespero, resta ao povo a anestesia, a distração. Somos uma população medicada, como banalizou um dos entrevistadores no filme. O aviso de um apocalipse iminente dividiu o palco com o término de um relacionamento entre celebridades. 

Quando a comunidade científica começou a alertar sobre os perigos da pandemia, o governo chamava a doença de "gripezinha", só mais um cometinha que vai passar longe. Quando o número de mortos começou a subir em grande escala,  ou seja, quando o cometa se tornou visível para todos no céu, transformou em posição política a própria leitura da realidade, desacreditando veículos de informação, cientistas, instituições de saúde, e qualquer um que quisesse denunciar o problema que estava ali, diante dos nossos olhos. Conseguiu fazer muitos brasileiros não olharem para o lado, como aqueles que não queriam olhar para cima na obra de MacKay e Sirota.

O mesmo governo propôs, como aquele da ficção, soluções mirabolantes para combater não os problemas, claro, mas as soluções reais. Remédios sem comprovação científica e placebos foram o nosso plano de coleta dos minérios do cometa. Tal como um não tinha interesse na saúde pública da população, o outro não tinha na sobrevivência da vida na terra. A preocupação era tão somente com os efeitos do isolamento social na economia. O guru do capitalismo brasileiro representa melhor Peter Isherwell do que o sr. Zuckerberg. "O que eu mais gosto é que toda crise é cheia de oportunidades". E de fato os mais ricos enriqueceram durante a crise ainda vivida no Brasil. 

Há também na obra uma autocrítica dos criadores àqueles que olham para cima, ou que olham para o lado, no nosso caso. Olhamos, mas com frequência fechamos os olhos. Não foram somente os defensores do governo atual que desrespeitaram, eventualmente, os protocolos sanitários. Além disso, não sabemos de que forma, quando enxergarmos o problema, podemos mostrá-lo aos outros. Nos conformamos e nos convencemos, com facilidade, de que não há mais saída ou solução, ou então optamos pela saída mais popular, o meio-termo que nada resolve, como fez durante boa parte da narrativa o personagem de Leonardo DiCaprio.  

O filme, para além dessa crítica ao modo como a política e as mídias sociais colocaram em xeque o conhecimento científico, possui outras questões. A mais notória delas foi o machismo em escala global contra a personagem de Jennifer Lawrence. Ficou mais fácil desacreditar a ciência porque seu porta-voz inicial foi uma mulher. Porque o cometa ganhou seu nome, pelo simples acaso de que ela o havia descoberto. A ameaça de nossa extinção foi reduzida a mais um caso de mulher histérica. Histeria vem de hyster, palavra grega que significa útero. Essa falha de caráter do machismo em nossa percepção custou a vida na terra no filme. Atrapalhou bastante os esforços de quem tentou combater o negacionismo.

A autocrítica anteriormente exposta aparece também nesse problema, muito bem representada no personagem de DiCaprio. Traiu sua colega de trabalho, ao embarcar na deixa dos entrevistadores e insinuar que ela deveria fazer uso do mesmo medicamento que ele, desautorizando assim a fala de uma cientista num momento crucial. Traiu sua companheira de vida, e em seguida a própria ciência, para alimentar a própria vaidade, essa anestesia masculina que tomamos diariamente para aliviar os nossos problemas. 
Com um olhar atento, podemos perceber que a denúncia do filme recai sobre todos nós, não apenas sobre os negacionistas. Uma obra, portanto, que nos dá a oportunidade de olharmos o espelho machadiano na atualidade. 

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Espelho Machadiano explicado


"Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária... Olhei e recuei, o próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou uma figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra." 

Esta é a realização de um antigo projeto, de vontade pessoal, motivado por alguns amigos, nascido de algumas conversas. Dedico a empreitada, em especial, ao João Guilherme e ao Pedro Poranga, companheiros da árdua estrada do Mestrado de Teoria Literária na UFRJ.  O blog, que tem sua versão no perfil homônimo no Instagram, é dedicado a fazer reflexões sobre questões atuais por meio de obras de grande ou alguma repercussão, que marcaram a visão de mundo deste que escreve e trouxeram a inexplicável necessidade de compartilhá-la com mais pessoas. 

Toda escrita nesta página será somente de ensaios, declaradamente mais pessoais do que acadêmicos. Essa escrita busca ser uma conversa, franca e aberta, com meu leitor. A formação acadêmica pode ter me dado algum chão para começar esse diálogo. Mas a minha base, em verdade, é a minha necessidade de escrita, de dizer as coisas que me devoram, enquanto não forem ditas. A postura daquele que escreve foi orientada, como sugere o título, pela obra de Machado de Assis porque não encontrei, até hoje, um crítico mais preciso e feroz de nosso projeto de Brasil (ao que parece somos sempre um projeto, nunca um país) que o pai de Dom Casmurro, Quincas Borba e Brás Cubas.

O conceito que norteia as reflexões da página pode ser encontrada em seu conto O espelho. Os ensaios pretendem repetir o gesto de Jacobina, personagem do conto que, no desespero de sua solidão no sítio, resolve superar o medo de olhar o reflexo no espelho que havia em seu quarto e encontra uma figura disforme, desagradável. Tal como ele, em situações de desespero e angústia, fica mais difícil olharmos para nós mesmos. Como se um instinto de autopreservação nos forçasse a tomar distância do espelho.

No entanto, os meus ensaios se recusam a repetir o que o personagem faz em seguida no conto. Colocar a farda de alferes, para esconder o indivíduo medroso e abandonado no sítio da tia. Jacobina resolve o dilema de olhar para sua alma interior, para o Eu que sofria uma terrível angústia existencial, usando a máscara da alma exterior, o Eu que mostramos aos outros. Aquela versão que todos elogiavam e admiravam: o valente alferes na sua farda. Na minha opinião, este é o grande problema de muitas críticas sociais, quando as leio ou ouço. Elas expõem o indivíduo e a sociedade desagradável que somos, mas terminam por higienizá-los com a defesa daquilo que deveríamos ser. 

A postura em si não está incorreta. De fato, devemos mudar e corrigir aquilo que consideramos errado, em nós mesmos e no mundo. No entanto, para fazer isso, primeiro precisamos compreender o que de fato está errado conosco. Reflexão, entendimento e compreensão são atividades que demandam muito tempo. Uma exigência que não se adequa ao ritmo frenético de trabalho e consumo da sociedade capitalista. Não é de surpreender, portanto, que mesmo quem se acredita crítico desse modelo social, acabe se submetendo a ele quando pensa, quando fala, quando escreve. Nessa crítica que faço aos outros, é necessário dizer que incluo a mim próprio. Todos possuem o movimento de crítica e autocrítica. Só é possível uma crítica honesta da sociedade quando nos consideramos parte dela.  

Os ensaios aqui presentes são críticas literárias de obras atuais que alcançaram algum sucesso recentemente, em especial aquelas no formato audiovisual. São críticas de sua força estética, de como elas atuaram sobre o nosso sensível, para citar o conceito do filósofo contemporâneo Jacques Rancière. São críticas das questões sociais que elas provocam e trazem à tona, daquilo que vemos no espelho aristotélico da obra. São críticas do indivíduo que somos dentro desta sociedade, tanto o "eu" autor quanto o "tu" leitor, ou daquilo que nos mostra o espelho machadiano. 

Os escritos desta página não se propõem, no entanto, a colocar nenhuma saída para as questões trazidas. Os problemas de que trata a arte, que contaminam nossas conversas no dia a dia, não são problemas que podem ser resolvidos por uma simples mudança de postura, por uma ação política contundente, por um cancelamento. Ainda que possam ser resolvidos de tal forma, precisamos, antes disso, compreendê-los. Essa lacuna é a grande motivação para a escrita deste blog. Pretendo pensar e questionar nossos modos de ser e fazer política em sociedade, e não defender ou combater modos específicos.   

Esta é uma página dedicada, portanto, a escrever sobre Arte e Política. Quer pensar sobre a importância estética e política das obras de arte que Adorno e sua escola outrora desprezaram. Quer pensar o nosso modo de ser e fazer no mundo, a partir do exercício de reflexão que a arte inevitavelmente carrega. Como um espelho machadiano que nos obriga a ver um desesperado e disforme Jacobina, quer mostrar o Eu que não desejamos expor aos outros. É esse indivíduo nu, "sem qualidades", para usar o título da obra de Musil, tão cara ao meu amigo Poranga, que me interessa trazer nos escritos aqui presentes. 

Não olhe para o lado Uma leitura do filme "Não olhe para cima" de Adam McKay e David Sirota Lançado na plataforma Netflix na véspe...