O Espelho Machadiano explicado
"Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária... Olhei e recuei, o próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou uma figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra."
Esta é a realização de um antigo projeto, de vontade pessoal, motivado por alguns amigos, nascido de algumas conversas. Dedico a empreitada, em especial, ao João Guilherme e ao Pedro Poranga, companheiros da árdua estrada do Mestrado de Teoria Literária na UFRJ. O blog, que tem sua versão no perfil homônimo no Instagram, é dedicado a fazer reflexões sobre questões atuais por meio de obras de grande ou alguma repercussão, que marcaram a visão de mundo deste que escreve e trouxeram a inexplicável necessidade de compartilhá-la com mais pessoas.
Toda escrita nesta página será somente de ensaios, declaradamente mais pessoais do que acadêmicos. Essa escrita busca ser uma conversa, franca e aberta, com meu leitor. A formação acadêmica pode ter me dado algum chão para começar esse diálogo. Mas a minha base, em verdade, é a minha necessidade de escrita, de dizer as coisas que me devoram, enquanto não forem ditas. A postura daquele que escreve foi orientada, como sugere o título, pela obra de Machado de Assis porque não encontrei, até hoje, um crítico mais preciso e feroz de nosso projeto de Brasil (ao que parece somos sempre um projeto, nunca um país) que o pai de Dom Casmurro, Quincas Borba e Brás Cubas.
O conceito que norteia as reflexões da página pode ser encontrada em seu conto O espelho. Os ensaios pretendem repetir o gesto de Jacobina, personagem do conto que, no desespero de sua solidão no sítio, resolve superar o medo de olhar o reflexo no espelho que havia em seu quarto e encontra uma figura disforme, desagradável. Tal como ele, em situações de desespero e angústia, fica mais difícil olharmos para nós mesmos. Como se um instinto de autopreservação nos forçasse a tomar distância do espelho.
No entanto, os meus ensaios se recusam a repetir o que o personagem faz em seguida no conto. Colocar a farda de alferes, para esconder o indivíduo medroso e abandonado no sítio da tia. Jacobina resolve o dilema de olhar para sua alma interior, para o Eu que sofria uma terrível angústia existencial, usando a máscara da alma exterior, o Eu que mostramos aos outros. Aquela versão que todos elogiavam e admiravam: o valente alferes na sua farda. Na minha opinião, este é o grande problema de muitas críticas sociais, quando as leio ou ouço. Elas expõem o indivíduo e a sociedade desagradável que somos, mas terminam por higienizá-los com a defesa daquilo que deveríamos ser.
A postura em si não está incorreta. De fato, devemos mudar e corrigir aquilo que consideramos errado, em nós mesmos e no mundo. No entanto, para fazer isso, primeiro precisamos compreender o que de fato está errado conosco. Reflexão, entendimento e compreensão são atividades que demandam muito tempo. Uma exigência que não se adequa ao ritmo frenético de trabalho e consumo da sociedade capitalista. Não é de surpreender, portanto, que mesmo quem se acredita crítico desse modelo social, acabe se submetendo a ele quando pensa, quando fala, quando escreve. Nessa crítica que faço aos outros, é necessário dizer que incluo a mim próprio. Todos possuem o movimento de crítica e autocrítica. Só é possível uma crítica honesta da sociedade quando nos consideramos parte dela.
Os ensaios aqui presentes são críticas literárias de obras atuais que alcançaram algum sucesso recentemente, em especial aquelas no formato audiovisual. São críticas de sua força estética, de como elas atuaram sobre o nosso sensível, para citar o conceito do filósofo contemporâneo Jacques Rancière. São críticas das questões sociais que elas provocam e trazem à tona, daquilo que vemos no espelho aristotélico da obra. São críticas do indivíduo que somos dentro desta sociedade, tanto o "eu" autor quanto o "tu" leitor, ou daquilo que nos mostra o espelho machadiano.
Os escritos desta página não se propõem, no entanto, a colocar nenhuma saída para as questões trazidas. Os problemas de que trata a arte, que contaminam nossas conversas no dia a dia, não são problemas que podem ser resolvidos por uma simples mudança de postura, por uma ação política contundente, por um cancelamento. Ainda que possam ser resolvidos de tal forma, precisamos, antes disso, compreendê-los. Essa lacuna é a grande motivação para a escrita deste blog. Pretendo pensar e questionar nossos modos de ser e fazer política em sociedade, e não defender ou combater modos específicos.
Esta é uma página dedicada, portanto, a escrever sobre Arte e Política. Quer pensar sobre a importância estética e política das obras de arte que Adorno e sua escola outrora desprezaram. Quer pensar o nosso modo de ser e fazer no mundo, a partir do exercício de reflexão que a arte inevitavelmente carrega. Como um espelho machadiano que nos obriga a ver um desesperado e disforme Jacobina, quer mostrar o Eu que não desejamos expor aos outros. É esse indivíduo nu, "sem qualidades", para usar o título da obra de Musil, tão cara ao meu amigo Poranga, que me interessa trazer nos escritos aqui presentes.
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